Era uma vez um muro...

9 de novembro de 1989, quinta feira

No Parlamento Alemão, em Bonn, a sessão é interrompida pelas notícias da abertura das fronteiras entre as duas Alemanhas (República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã).
É o início da queda do Muro de Berlim.
Após ouvir as boas novas, os parlamentares se levantam e cantam o hino nacional alemão.

10 de novembro de 1989, sexta feira

O momento é histórico, o clima é festivo. A emoção é quase palpável. “A guerra acabou hoje”, disse-me um colega de trabalho, alemão que nasceu “do lado de lá”.
Na televisão, entrevistas, muitas entrevistas. Pessoas dançam sob os arcos do Portal de Brandenburgo.
Abraços, gritos, soluços, declarações, vozes embargadas.
Uma moça que chega ao lado Ocidental afirma que só vai até ali, na Avenida Kurfürstendamm, tomar uma cerveja. Depois volta para casa.
Um homem, já de volta ao outro lado, mostra o que foi comprar no mundo livre: meia dúzia de bananas, para as crianças.
Lembro-me do meu pai. Quando emigramos para o Brasil, há 37 anos (em 1952), êle achou fantástico o fato de que neste país as pessoas não compravam UMA banana, como na Itália do pós-guerra. Compravam logo UM CACHO de bananas.

A televisão da DDR (Deutsche Demokratische Republik) – a República Democrática Alemã, que nunca foi nem república nem democrática, apenas alemã – também mostra entrevistas. As pessoas afirmam que só vão atravessar a fronteira para dar uma olhada, depois pretendem voltar para casa. As mesmas pessoas, entrevistadas mais tarde, aqui, dizem que não querem mais voltar. Nem todos estão convencidos de que a abertura é para valer, muitos pensam em colher a oportunidade antes que ela passe, antes que seja tarde demais, antes que as portas da liberdade se fechem novamente.
Outros acham que não há pressa, agora pode-se escolher de que lado do Muro se quer ficar.
O Muro, símbolo da opressão, do choque, do confronto.
O Muro, fronteira entre o passado e o futuro.

Vejo que agora à noite foi aberta mais uma passagem no Muro, na Treptow-Pushkin Allee. Máquinas e homens derrubaram alguns metros desta tristemente famosa barreira, acompanhados de um caminhão no qual seriam removidos os escombros. Mas o caminhão partiu vazio. Os espectadores da demolição, aos milhares, levaram cada pedaço de concreto como lembrança. Lembrança de um muro, de uma era, de uma história: era uma vez um muro, que dividia um povo...

O Muro ainda está de pé, mas já está se tornando um monumento do passado, como a Igreja da Memória e o Reichstag.
Um jovem oferece uma flor a um policial da DDR, que a coloca no bolso da jaqueta. A cena seria inimaginável, há apenas 24 horas.

As pessoas aplaudem muito. Às vezes aplaudem alguém, específicamente; outras vezes o aplauso é apenas uma maneira de extravasar a alegria, quando as cordas vocais já não se prestam mais aos gritos, e as lágrimas secaram.

Um homem consegue andar de bicicleta, em cima do Muro.
É feriado escolar. As crianças estão aprendendo História ao vivo, e não nos bancos escolares.
A História está sendo escrita sob seus olhos, aqui e agora.

A solidariedade popular é impressionante e comovedora. Desconhecidos dos dois lados se abraçam. Berlinenses ocidentais convidam seus concidadãos orientais para uma cerveja, um lanche; oferecem ajuda, presentes, conselhos.
Quem vem para cá pela primeira vez apresenta um documento, preenche um formulário e recebe do Governo da República Federal da Alemanha a quantia de cem marcos alemães ocidentais – de presente. Para isso, formam-se filas de três, quatro quilômetros junto aos bancos. Se há alguma coisa à qual os berlinenses do leste estão acostumados, é ficar em filas. É o que tinham de fazer costumeiramente, cada vez que quisessem adquirir qualquer coisa.
As lojas em Berlim Ocidental ficam abertas até mais tarde, para que os novos visitantes possam fazer compras, desta vez sem filas. São vendidos muitos mapas rodoviários, mercadoria inexistente do lado de lá. Café, frutas, eletrodomésticos e lembranças também são objeto de muita procura.
O locutor da TV fala em “Oktoberfest and der Mauer” – Oktoberfest junto ao Muro.
Hoje, ninguém trabalhou por aqui. Este ano, o Natal chegou mais cedo a Berlim.

11 de novembro de 1989, sábado

Cerca de 800 mil visitantes atravessaram a fronteira entre as duas Alemanhas – ainda são duas – hoje. A metade apenas em Berlim, o que provocou congestionamentos de 60 km. de extensão, e esperas de até 11 horas em filas e estradas. Carros e pedestres aguardam pacientemente a sua vez. Ninguém reclama.
À noite, uma cena que nem um otimista inveterado teria ousado sonhar há menos de três dias: moradores de Berlim Oriental pulam o Muro para voltar para casa, pois os postos de trânsito não dão vazão ao fluxo de pessoas e veículos.
Pular o Muro, não para sair, mas para entrar na DDR ?
São cenas de delírio explícito na televisão, em horário nobre.

Não posso deixar de lembrar a famosa frase do então presidente dos USA, John Kennedy, proferida quando de sua visita a Berlim, em 1963 : “I take pride in the words, ich bin ein Berliner”. (Eu me orgulho de dizer, eu sou um berlinense”).

Hoje, com muita emoção, eu também me sinto um pouco berlinense.

FRASES

Ocasiões históricas são propícias para a cunhagem de frases, algumas à altura dos eventos, outras nem tanto.
A seguir, um apanhado de pronunciamentos de políticos e pessoas do povo, registrados nos dias que se seguiram à queda do Muro de Berlim.

• Nós parabenizamos os habitantes da República Democrática Alemã pela sua revolução pacífica e democrática.
• O Muro não nos separa mais. Este foi o momento pelo qual esperamos durante 28 anos. Nós, alemães, somos agora o povo mais feliz do mundo. (Walter Momper, prefeito de Berlim)
• O que querem os alemães ? Querem em primeiro lugar viver em paz.
• Saúdo todos os meus concidadãos, saúdo todos os europeus. Saúdo todos os que tornaram isso possível.
• Não há uma Alemanha capitalista. Não há uma Alemanha socialista. Há uma Alemanha comprometida com a liberdade.
• Das ist mein Deutschland – esta é minha Alemanha.

Egon Kreuz, chefe do ainda existente governo da DDR, afirma que haverá eleições livres, para que os melhores cheguem ao Parlamento, mas adverte: “A questão da reunificação não está na ordem do dia, e não nos ocupamos com isso no momento”.
Mas é Willy Brandt, que era prefeito de Berlim em 13 de agosto de 1961, quando o Muro foi construído, que enuncia a previsão mais acertada:
“Berlim vai viver, e o Muro vai cair”.

GSL
Novembro de 1989

Meu pai, Sandor "Alexander" Lenard


Quando eu nasci, Gahndi ainda estava vivo, e Hitler já havia morrido.
Hoje em dia, meu pai já morreu, mas Bin Laden continua vivo.
O mundo mudou. Para melhor, em alguns sentidos. Para pior, muito pior, em outros.

Meu pai nunca ouviu falar em Internet. A música de Bach, que ele tanto amava, era tocada em discos de vinil. Não havia CD nem DVD, não havia computadores pessoais, fax, impressoras portáteis, scanners... Telefones eram raros, em 1966 minha mãe e eu ficamos quase que todo um dia em um posto telefônico, em Blumenau,à espera de que fosse completada uma ligação para São Paulo.
Havia carros, basicamente de dois tipos: os muito antigos, Fords e Chevrolets, importados nas décadas de quarenta e cinquenta, e os veículos mais novos, todos Fuscas. Eu aprendi a dirigir num “qualquer coisa” 46, ambos tínhamos 19 anos, e por incrível que pareça, eu já tinha carteira de motorista, só não sabia dirigir.

Meu pai nunca teve conta em banco, cartão de crédito, CIC, RG, RNE, carteira de motorista, de reservista, título de eleitor, TV, video, forno de microondas nem barbeador elétrico.
Seu passaporte era de apátrida, era cidadão do mundo, não de uma nação.
Nunca soube o que era FGTS, PIS, INSS, BNDES, IBAMA, MST, PT, PSDB, PFL, AIDS, FMI, FHC, CUT, HIV, CNN, CPI, CD-ROM, IPTU, IPVA, IRPF, CD , DVD, CVM, STF, INPC, FGV, CEF, DSV.
Ah, sim, e nem WWW.

Chegou a conhecer minha primeira esposa, mas não a segunda, nem minha filha.
Foi avô de dois meninos, por parte de meu irmão, mas nunca conheceu os netos nem a nora, que moravam na Alemanha.

Conheceu de perto os horrores da segunda grande guerra, continuação tardia da primeira, e resolveu não esperar pela terceira na Europa.
Preferiu vir ao Brasil, longe da terra natal - a Hungria - mas longe também da Guerra Fria, dos vários ismos - latentes, como o nazismo e o fascismo, ou ativos, como o comunismo - e sobretudo longe da perspectiva de morrer de fome ou de radiação nuclear. (Ainda não haviam inventado as usinas de Angra dos Reis).
No Brasil, banana ainda era vendida a preço de banana, e o islamismo ainda não havia saído dos livros de história, das lojas de tecidos na 25 de Março e do restaurante Almanara.
Habib queria apenas dizer “amigo”, e por “pesadelo árabe” entendia-se estar perdido no deserto, sem um camelo nem protetor solar.

Meu pai curou centenas de pessoas – era médico – e escreveu e traduziu vários livros. Desenhou flores, pintou quadros, plantou centenas de pinheiros.
Cultivou aspargos e cogumelos quando estes eram vegetais ainda desconhecidos no Brasil.
Ensinou grego e latim em uma universidade americana (Charleston, South Carolina), e deu palestras em várias outras.
Escreveu volumes de poesias e tocou Bach ao piano, ao órgão e ao cravo.
Falava uma dúzia de línguas, vivas e mortas, tinha um enorme senso de humor e era um grande contador de histórias.
Filósofo, artista, escritor, tradutor, poeta, músico, linguista. Homem da Renascença. Gênio.

Meu pai foi tudo isso, e muito mais. Foi meu mestre, meu guia, meu amigo.
Viverá em mim até o fim de meus dias, e mesmo depois disso continuará presente em suas obras.

Em resumo, para mim, foi o melhor pai do mundo.

GSL

28.10.2001

Quero minha rua de volta

Lembro de um vendedor de sorvetes, nos anos setenta, que circulava pelo centro de São Paulo a bordo de uma charrete, puxada por um lento pangaré.
Volta e meia o sorveteiro parava para atender a um cliente, e se fosse numa rua estreita, bloqueava uma das pistas de trânsito.
Alguns motoristas mais impacientes calcavam a mão na buzina, sem o menor resultado. Colocavam então a cabeça para fora do veículo, e proferiam insultos dirigidos ao sorveteiro, ao equino e às senhoras genitoras de ambos. Até que algum cliente ou transeunte, que conhecia o imperturbável vendedor, alertava os motoristas: “não adianta buzinar nem gritar, o homem é completamente surdo!”.

Havia também uma figura folclórica que perambulava pelo centro da cidade – Avenidas Ipiranga, São João e São Luiz, Praça da República e adjacências.
Tratava-se de uma senhora quarentona, magra, altiva e maquiada, totalmente vestida de branco. Por vezes parecia um fantasma ambulante, envolta que estava em alvas túnicas (ou seriam lençóis ?).
Com um rosário numa mão e um megafone na outra, bradava contra o pecado e os pecadores, a luxúria e a devassidão desta São Paulo sodomagomorriana.
Principalmente em épocas pré carnavalescas, alertava contra os pecados mortais que certamente seriam cometidos desbragadamente durante o reinado de Momo.
Tecia elogios à Virgem Maria e seu filho (isso sempre me pareceu uma contradição em termos, mas quem sou eu para duvidar de um milagre...), e fazia tudo isso em alto e bom som. Muito alto, por sinal, pois o megafone era daqueles usados em cidades do interior para fazer anúncios em praça pública.
Era conhecida como “ a louca do megafone”, ainda que alguns preferissem considerá-la uma santa – ou quase, pois comentava-se que era muito rica, qualidade essa dificilmente associada à santidade.

Seja como for, eram personagens inócuos, que davam até um certo toque de poesia ao duro asfalto e ao concreto circunstante.

Mas o panorama citadino mudou muito, desde então.

A cada dia que passa, mais espaço nas ruas e calçadas de São Paulo (e outras cidades também, suponho) vai sendo tomado por motoqueiros (refiro-me aos que “cortam caminho” transitando em calçadas), carrinheiros (daqueles que recolhem materiais recicláveis), manobristas de valet service e seus vistosos guarda-sóis, caçambas cheias de entulho, vendedores ambulantes, pedintes e mendigos, distribuidores de folhetos, pregadores de hare krishna, obras (principalmente em época de eleições), kombis-lanchonetes, multidões em pontos de ônibus na hora do rush, placas de lançamentos imobiliários, pipoqueiros, lixo ensacado ou a granel, mesas e cadeiras de bares e restaurantes....

Sim, eu sei, e até concordo: todos tem direito à vida, e ao trabalho.
Está na Constituição, e mesmo se não estivesse, duvido que mudaria alguma coisa.

Mas, e o meu direito a andar na calçada em linha reta, sem ter de ziguezaguear entre obstáculos, vivos ou inanimados ? e o meu direito de não ser abordado, aliciado e atropelado, no que antigamente se chamava de “passeio público” ? e o meu direito de não escorregar em poças de maionese e ketchup, e de não ter de desviar de mesinhas cobertas de mercadorias contrabandeadas e falsificadas ?
Infelizmente, esses direitos não constam do texto constitucional.

Estamos em época de eleições municipais, e os pretendentes ao cargo de prefeito são pródigos em prometer um mundo melhor, onde o trânsito anda, os fiscais fiscalizam, as escolas ensinam e os hospitais curam.

Mas não ouvi nenhum candidato a alcaide prometer que, caso eleito, devolveria a totalidade das calçadas, e pelo menos parte das ruas, a esse desprotegido ser ameaçado de extinção: o pedestre.

GSL
08.09.08

Atenção, senhores passageiros

- Atenção, senhores passageiros...ficha número um ?
- Aqui !
- Pode embarcar. Ficha número dois ?
E o embarque prosseguia, ordenadamente, até que todos os 18 ou 20 passageiros estivessem a bordo do DC-3.
O ano, 1963. O local, aeroporto de Itajaí
[1].
O check-in (que naquele tempo ainda se chamava simplesmente de apresentação no aeroporto) funcionava assim: cada passageiro, à medida que chegava ao balcão da companhia aérea, recebia uma ficha de plástico azul, com um número gravado. Na hora do embarque, convocado aos berros pelo despachante de vôo, os passageiros caminhavam os poucos metros até o avião e aguardavam ao pé da escada até serem chamados, um a um. Assim, o embarque era efetuado na ordem de chegada ao aeroporto, e quem desejasse sentar na janelinha, que chegasse mais cedo.
Já dentro do avião, o passageiro que quisesse acomodar-se mais à frente era obrigado a subir pelo corredor, uma rampa íngreme, em função do diminuto tamanho da roda traseira sobre a qual repousava a cauda do avião. O DC-3 ficava com a frente empinada, e só atingia a posição horizontal na fase final da decolagem.
Bem, já estamos voando de Itajaí para Porto Alegre. Direto ? Nem pensar. São três escalas, em Florianópolis, Tubarão e Caxias do Sul.
Esta última escala era a mais bucólica. Pousávamos em uma espécie de pastagem, espantando famílias de bovinos, crianças que jogavam bola e um ou outro camponês distraído.
Felizmente os ecologistas ainda não atrapalhavam a aviação.

Quatro anos mais tarde eu estava novamente ao pé da escada de um avião, desta vez um
DC-8 da Braniff. O aeroporto: Viracopos. O barracão – perdão, o terminal – mais lembrava um posto avançado da Legião Estrangeira. As instalações mais luxuosas do aeroporto pertenciam ao restaurante, do qual dizia-se ser o único estabelecimento gastronômico do mundo a dispor de uma pista de pouso própria.
Desta vez, minha presença ao pé do avião não era na qualidade de passageiro. Uniformizado e perfilado junto aos colegas, eu exercia a função de despachante de aeroporto.
A cada uma das três chegadas semanais dos coloridos aviões da Braniff, os funcionários da companhia aguardavam na pista, qual pelotão, até que o avião completasse as manobras de estacionamento. Só então cada um assumia suas funções no desembarque, na alfândega, na carga ou em operações.
Minha experiência de trabalho como motorista de uma fábrica em Memphis, no sul dos EUA, me habilitara a cuidar das comunicações com a tripulação de cockpit. Afinal, eu era um dos poucos que entendiam perfeitamente o enrolado “idioma” texano, falado pelos pilotos.
Antes da chegada dos vôos eu operava um antigo rádio VHF, com o qual nos comunicávamos com o avião. Mais tarde, acompanhava os passageiros que chegavam dos Estados Unidos até o aeroporto de Congonhas, a bordo dos aviões Dart Herald da Sadia, hoje TransBrasil.
[2]

Eram vôos fretados, tanto para os passageiros que chegavam ao Brasil, quanto para aqueles que partiam, à noite, em nossos vôos para Miami, New York ou Los Angeles.
Com este serviço adicional, destinado a aliviar as agruras do percurso entre Congonhas e Viracopos, enfrentávamos a concorrência da Pan Am e da Varig. Enquanto estas companhias voavam sem escalas entre o Brasil e os destinos americanos, nossos vôos passavam por Lima, e por vezes também pelo Panamá e Ecuador. A Braniff também enfrentava a fama de ser “the largest un-scheduled airline in the world”
[3], resultado dos constantes atrasos dos vôos.
Para nós, no aeroporto, um vôo que chegasse até seis horas após o horário previsto estava “on schedule”...no horário.

Nosso chefe, o gerente de aeroporto da empresa, por alguma razão até hoje inexplicada, não permitia que tirássemos uma soneca sequer, mesmo que o avião atrasasse 12 horas. Aprendemos a dormir de olhos abertos. Não podíamos tomar cerveja. Treinamos o garçom do bar para nos servir a loirinha em garrafas de guaraná.
Nosso salário era magro. A maior parte dos funcionários, também. Mas havia o dinheiro das diárias de alimentação, pago nos dias em que trabalhávamos em Viracopos. Pelo menos, comíamos três vezes por semana. Era bem mais do que eu conseguira durante os três meses em que procurei emprego em São Paulo. Por pouco não me tornei vendedor de livros, motorista de madame ou professor de inglês.

Entrar em uma companhia aérea, naquela época, era uma questão de Q.I. – Quem Indicou.
Uma amiga da KLM me revelou que a Braniff ia contratar duas pessoas. Fui lá. Não consegui passar nem da telefonista...algumas manobras mais tarde, logrei uma entrevista com o gerente de aeroporto. Tive de preencher um formulário e escrever uma página sobre o tema “Por que quero trabalhar na Braniff”. Foi fácil. Minha primeira – e até então única – viagem aos Estados Unidos havia sido justamente pela Braniff. E meu pai havia me ensinado a escrever textos com começo, meio e fim, visto que os testes de múltipla escolha ainda não haviam sido inventados.

Quem começava a trabalhar em uma companhia aérea, na década de 60, era invariavelmente submetido a algum trote. Eram brincadeiras criativas e divertidas. Menos para a vítima, é claro. Mas os únicos ferimentos eram infligidos ao orgulho dos iniciantes. Quanto mais “prosa” ou “metida”, como dizíamos então, era a pessoa, maior era a humilhação.

Eu fui enviado à torre de controle do aeroporto, supostamente para retirar um boletim meteorológico. As luzes da estreita escada circular da torre foram apagadas. Subi tateando e batendo a cabeça nas paredes. Quando cheguei ao topo, tonto e exausto, fui informado de que o boletim já havia sido transmitido por telefone...

Um jovem e atlético novato foi enviado ao DAC,
[4] para retirar as chaves do aeroporto.
Lá foi informado de que as chaves estavam na alfândega, onde não havia ninguém de plantão.
Ao voltar sem as chaves, foi alertado pelos colegas de que se não as encontrasse rapidamente seria responsável por um terrível acidente, visto que o aeroporto estava fechado e o avião, quase sem combustível, precisava pousar imediatamente...Imaginem só o pânico do moço, que, como todo mundo, já ouvira falar de “aeroporto fechado”, sem saber que isso se referia apenas às condições meteorológicas...

Aproveitando da ausência do diretor da empresa, convocamos certa vez um funcionário recém contratado para uma fictícia reunião muito importante. O papel do diretor ausente, executivo este desconhecido pelo novato, foi ocupado por um promotor de vendas dotado de tendências artísticas. O “diretor” cobrou melhores resultados, esbravejou, ameaçou despedir, deu socos na mesa e xingou em várias línguas – o verdadeiro diretor, como todos sabiam, era um anglo-argentino. O novo colega saiu de lá tremendo, certo de que não iria completar nem o período de experiência...

Algumas vezes, sempre em função de vôos atrasados e tarefas operacionais, passávamos a noite no aeroporto de Congonhas. Até uma ou duas horas da madrugada havia o movimento das pessoas que iam ao aeroporto tomar um cafezinho, antiga tradição paulistana. Não havia nada mais aberto na cidade àquela hora – serviço de 24 horas, só no pronto socorro e no Ceasa (hoje CEAGESP
[5]), onde podia-se tomar sopa de cebola até de madrugada.
Quando o aeroporto ficava totalmente vazio e silencioso, pois até os vigias dormiam, promovíamos animadas corridas em cadeira de rodas, pelos saguões.

Os pilotos da Sadia também apreciavam uma brincadeira, de preferência utilizando o avião como instrumento. Às vezes, a caminho de Viracopos, dávamos uma carona no Dart Herald (sem passageiros, é claro) a algum colega, para uma “viagem de familiarização”. O avião decolava de Congonhas, mas após algumas voltas panorâmicas sobre São Paulo aprestava-se a pousar no Campo de Marte. Ou, pelo menos, é o que aparentava fazer. Só que, após percorrer toda a extensão da pista a poucos metros de altitude, o avião arremetia subitamente. O coitado do colega novato, que a essas alturas já não estava entendendo que raio de percurso era aquele, quase morria de susto e se molhava todo – com o suco de laranja que gentilmente lhe havia sido servido.

Outro passatempo favorito dos pilotos da Sadia (eram sempre os mesmos dois), era o de dar vôos rasantes, à noite, sobre a Via Anhanguera. De repente acendiam as luzes e os faróis de pouso da aeronave, cegando e aterrorizando os motoristas na Via, que pensavam tratar-se de espaçonave prestes a atacá-los.

Dentre todos os colegas com os quais trabalhei nos aeroportos de Congonhas e Viracopos, um merece especial destaque: Gandola, um brasileiro de origem africana.
Sua função era das mais modestas: carregador. Colocava as malas na balança (daquelas antigas, enorme), etiquetava a bagagem, e colocava os volumes no carrinho estacionado atrás do balcão, para que fossem levados até o avião.

Mas sua modéstia se restringia à função. De resto, portava-se como se fosse o rei do aeroporto de Viracopos, e não lhe faltavam súditos. Colocava apelido em todos, e ai de quem lhe fosse antipático. Inventava trotes e brincadeiras, e nem os funcionários mais graduados lhe escapavam. Quando algum colega viajava para Miami, levando uma mala vazia para as compras, ele a enchia com manuais e catálogos velhos, ou mesmo pedras. Ao abrir a mala na alfândega americana, a vítima tinha de dar explicações quanto ao conteudo da “bagagem” aos zelosos funcionários do fisco americano, e na melhor das hipóteses passava por debilóide.

À parte de seu trabalho em Viracopos, Gandola também era dono de uma banca de jornais e revistas. Numa época em que havia uma férrea censura política e de costumes, ele comercializava tranquilamente revistinhas “apimentadas”, em especial aquelas desenhadas pelo imortal Carlos Zéfiro, chamadas carinhosamente de “catecismos”.
[6]
Não lhe faltavam clientes, e guardo algumas dessas revistas, agora preciosas relíquias históricas, até hoje.

Mas Gandola também era capaz de quebrar os maiores galhos, em especial no que se referia à alfândega. Privava da amizade e simpatia de todos os fiscais, e nenhum amigo seu precisava se preocupar com o conteúdo das malas. É bem verdade que nosso “contrabando”, na época, era bem modesto: calças jeans americanas, discos inéditos no Brasil, pequenas televisões, comestíveis finos. Éramos os sacoleiros de então, e Gandola era a nossa “Ponte da Amizade”.

Hoje em dia, ao passear pelo saguão apinhado do aeroporto de Guarulhos, não posso deixar de embarcar em uma viagem sentimental ao passado da aviação em São Paulo.

Ao final dos anos sessenta, cerca de duas dúzias de empresas aéreas ofereciam a seus clientes um serviço quase personalizado. Conhecíamos muitos de nossos passageiros pelo nome, e, pricipalmente, conhecíamos uns aos outros.
Hoje em dia são mais de 70 companhias aéreas presentes em nosso país, através de escritórios próprios ou de representações. O volume anual de passageiros atinge números de sete dígitos, exigindo o concurso de milhares de aeroviários, para um atendimento quase sempre impessoal e automatizado.
Não poderia ser de outra forma. Junto com a quantidade vem o anonimato.

Passaram os anos, passou muita gente pelos dois lados do balcão.
Passaram até mesmo muitas empresas, como a Braniff, a Pan Am, a Eastern, a National, a TWA, a Aerolineas Peruanas, a British United Airways, a BOAC, a Transbrasil, a Cruzeiro do Sul, a VASP, a Panair do Brasil...

Pois é. Como dizíamos já naquela época, na vida tudo é passageiro.

GSL
25.08.1994


[1] O aeroporto mencionado era na cidade de Itajaí mesmo, posteriormente foi relocado para o município de Navegantes
[2] A TransBrasil cessou suas operações em dezembro de 2001
[3] “a maior empresa aérea sem horários do mundo”
[4] DAC – Departamento de Aeronáutica Civil, subordinado ao Ministério da Aeronáutica. Substituído em 2006 pela ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil
[5] CEAGESP - Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
[6] Carlos Zéfiro era o pseudônimo de Alcides Caminha, funcionário público do Ministério do Trabalho. Além de desenhar 862 revistinhas eróticas, foi compositor e parceiro de Nelson Cavaquinho. Sua identidade foi revelada em uma entrevista para a revista Playboy, em 1991. Faleceu em 1992. Vide http://www.carloszefiro.com/