Meu pai, Sandor "Alexander" Lenard


Quando eu nasci, Gahndi ainda estava vivo, e Hitler já havia morrido.
Hoje em dia, meu pai já morreu, mas Bin Laden continua vivo.
O mundo mudou. Para melhor, em alguns sentidos. Para pior, muito pior, em outros.

Meu pai nunca ouviu falar em Internet. A música de Bach, que ele tanto amava, era tocada em discos de vinil. Não havia CD nem DVD, não havia computadores pessoais, fax, impressoras portáteis, scanners... Telefones eram raros, em 1966 minha mãe e eu ficamos quase que todo um dia em um posto telefônico, em Blumenau,à espera de que fosse completada uma ligação para São Paulo.
Havia carros, basicamente de dois tipos: os muito antigos, Fords e Chevrolets, importados nas décadas de quarenta e cinquenta, e os veículos mais novos, todos Fuscas. Eu aprendi a dirigir num “qualquer coisa” 46, ambos tínhamos 19 anos, e por incrível que pareça, eu já tinha carteira de motorista, só não sabia dirigir.

Meu pai nunca teve conta em banco, cartão de crédito, CIC, RG, RNE, carteira de motorista, de reservista, título de eleitor, TV, video, forno de microondas nem barbeador elétrico.
Seu passaporte era de apátrida, era cidadão do mundo, não de uma nação.
Nunca soube o que era FGTS, PIS, INSS, BNDES, IBAMA, MST, PT, PSDB, PFL, AIDS, FMI, FHC, CUT, HIV, CNN, CPI, CD-ROM, IPTU, IPVA, IRPF, CD , DVD, CVM, STF, INPC, FGV, CEF, DSV.
Ah, sim, e nem WWW.

Chegou a conhecer minha primeira esposa, mas não a segunda, nem minha filha.
Foi avô de dois meninos, por parte de meu irmão, mas nunca conheceu os netos nem a nora, que moravam na Alemanha.

Conheceu de perto os horrores da segunda grande guerra, continuação tardia da primeira, e resolveu não esperar pela terceira na Europa.
Preferiu vir ao Brasil, longe da terra natal - a Hungria - mas longe também da Guerra Fria, dos vários ismos - latentes, como o nazismo e o fascismo, ou ativos, como o comunismo - e sobretudo longe da perspectiva de morrer de fome ou de radiação nuclear. (Ainda não haviam inventado as usinas de Angra dos Reis).
No Brasil, banana ainda era vendida a preço de banana, e o islamismo ainda não havia saído dos livros de história, das lojas de tecidos na 25 de Março e do restaurante Almanara.
Habib queria apenas dizer “amigo”, e por “pesadelo árabe” entendia-se estar perdido no deserto, sem um camelo nem protetor solar.

Meu pai curou centenas de pessoas – era médico – e escreveu e traduziu vários livros. Desenhou flores, pintou quadros, plantou centenas de pinheiros.
Cultivou aspargos e cogumelos quando estes eram vegetais ainda desconhecidos no Brasil.
Ensinou grego e latim em uma universidade americana (Charleston, South Carolina), e deu palestras em várias outras.
Escreveu volumes de poesias e tocou Bach ao piano, ao órgão e ao cravo.
Falava uma dúzia de línguas, vivas e mortas, tinha um enorme senso de humor e era um grande contador de histórias.
Filósofo, artista, escritor, tradutor, poeta, músico, linguista. Homem da Renascença. Gênio.

Meu pai foi tudo isso, e muito mais. Foi meu mestre, meu guia, meu amigo.
Viverá em mim até o fim de meus dias, e mesmo depois disso continuará presente em suas obras.

Em resumo, para mim, foi o melhor pai do mundo.

GSL

28.10.2001