Era uma vez um muro...

9 de novembro de 1989, quinta feira

No Parlamento Alemão, em Bonn, a sessão é interrompida pelas notícias da abertura das fronteiras entre as duas Alemanhas (República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã).
É o início da queda do Muro de Berlim.
Após ouvir as boas novas, os parlamentares se levantam e cantam o hino nacional alemão.

10 de novembro de 1989, sexta feira

O momento é histórico, o clima é festivo. A emoção é quase palpável. “A guerra acabou hoje”, disse-me um colega de trabalho, alemão que nasceu “do lado de lá”.
Na televisão, entrevistas, muitas entrevistas. Pessoas dançam sob os arcos do Portal de Brandenburgo.
Abraços, gritos, soluços, declarações, vozes embargadas.
Uma moça que chega ao lado Ocidental afirma que só vai até ali, na Avenida Kurfürstendamm, tomar uma cerveja. Depois volta para casa.
Um homem, já de volta ao outro lado, mostra o que foi comprar no mundo livre: meia dúzia de bananas, para as crianças.
Lembro-me do meu pai. Quando emigramos para o Brasil, há 37 anos (em 1952), êle achou fantástico o fato de que neste país as pessoas não compravam UMA banana, como na Itália do pós-guerra. Compravam logo UM CACHO de bananas.

A televisão da DDR (Deutsche Demokratische Republik) – a República Democrática Alemã, que nunca foi nem república nem democrática, apenas alemã – também mostra entrevistas. As pessoas afirmam que só vão atravessar a fronteira para dar uma olhada, depois pretendem voltar para casa. As mesmas pessoas, entrevistadas mais tarde, aqui, dizem que não querem mais voltar. Nem todos estão convencidos de que a abertura é para valer, muitos pensam em colher a oportunidade antes que ela passe, antes que seja tarde demais, antes que as portas da liberdade se fechem novamente.
Outros acham que não há pressa, agora pode-se escolher de que lado do Muro se quer ficar.
O Muro, símbolo da opressão, do choque, do confronto.
O Muro, fronteira entre o passado e o futuro.

Vejo que agora à noite foi aberta mais uma passagem no Muro, na Treptow-Pushkin Allee. Máquinas e homens derrubaram alguns metros desta tristemente famosa barreira, acompanhados de um caminhão no qual seriam removidos os escombros. Mas o caminhão partiu vazio. Os espectadores da demolição, aos milhares, levaram cada pedaço de concreto como lembrança. Lembrança de um muro, de uma era, de uma história: era uma vez um muro, que dividia um povo...

O Muro ainda está de pé, mas já está se tornando um monumento do passado, como a Igreja da Memória e o Reichstag.
Um jovem oferece uma flor a um policial da DDR, que a coloca no bolso da jaqueta. A cena seria inimaginável, há apenas 24 horas.

As pessoas aplaudem muito. Às vezes aplaudem alguém, específicamente; outras vezes o aplauso é apenas uma maneira de extravasar a alegria, quando as cordas vocais já não se prestam mais aos gritos, e as lágrimas secaram.

Um homem consegue andar de bicicleta, em cima do Muro.
É feriado escolar. As crianças estão aprendendo História ao vivo, e não nos bancos escolares.
A História está sendo escrita sob seus olhos, aqui e agora.

A solidariedade popular é impressionante e comovedora. Desconhecidos dos dois lados se abraçam. Berlinenses ocidentais convidam seus concidadãos orientais para uma cerveja, um lanche; oferecem ajuda, presentes, conselhos.
Quem vem para cá pela primeira vez apresenta um documento, preenche um formulário e recebe do Governo da República Federal da Alemanha a quantia de cem marcos alemães ocidentais – de presente. Para isso, formam-se filas de três, quatro quilômetros junto aos bancos. Se há alguma coisa à qual os berlinenses do leste estão acostumados, é ficar em filas. É o que tinham de fazer costumeiramente, cada vez que quisessem adquirir qualquer coisa.
As lojas em Berlim Ocidental ficam abertas até mais tarde, para que os novos visitantes possam fazer compras, desta vez sem filas. São vendidos muitos mapas rodoviários, mercadoria inexistente do lado de lá. Café, frutas, eletrodomésticos e lembranças também são objeto de muita procura.
O locutor da TV fala em “Oktoberfest and der Mauer” – Oktoberfest junto ao Muro.
Hoje, ninguém trabalhou por aqui. Este ano, o Natal chegou mais cedo a Berlim.

11 de novembro de 1989, sábado

Cerca de 800 mil visitantes atravessaram a fronteira entre as duas Alemanhas – ainda são duas – hoje. A metade apenas em Berlim, o que provocou congestionamentos de 60 km. de extensão, e esperas de até 11 horas em filas e estradas. Carros e pedestres aguardam pacientemente a sua vez. Ninguém reclama.
À noite, uma cena que nem um otimista inveterado teria ousado sonhar há menos de três dias: moradores de Berlim Oriental pulam o Muro para voltar para casa, pois os postos de trânsito não dão vazão ao fluxo de pessoas e veículos.
Pular o Muro, não para sair, mas para entrar na DDR ?
São cenas de delírio explícito na televisão, em horário nobre.

Não posso deixar de lembrar a famosa frase do então presidente dos USA, John Kennedy, proferida quando de sua visita a Berlim, em 1963 : “I take pride in the words, ich bin ein Berliner”. (Eu me orgulho de dizer, eu sou um berlinense”).

Hoje, com muita emoção, eu também me sinto um pouco berlinense.

FRASES

Ocasiões históricas são propícias para a cunhagem de frases, algumas à altura dos eventos, outras nem tanto.
A seguir, um apanhado de pronunciamentos de políticos e pessoas do povo, registrados nos dias que se seguiram à queda do Muro de Berlim.

• Nós parabenizamos os habitantes da República Democrática Alemã pela sua revolução pacífica e democrática.
• O Muro não nos separa mais. Este foi o momento pelo qual esperamos durante 28 anos. Nós, alemães, somos agora o povo mais feliz do mundo. (Walter Momper, prefeito de Berlim)
• O que querem os alemães ? Querem em primeiro lugar viver em paz.
• Saúdo todos os meus concidadãos, saúdo todos os europeus. Saúdo todos os que tornaram isso possível.
• Não há uma Alemanha capitalista. Não há uma Alemanha socialista. Há uma Alemanha comprometida com a liberdade.
• Das ist mein Deutschland – esta é minha Alemanha.

Egon Kreuz, chefe do ainda existente governo da DDR, afirma que haverá eleições livres, para que os melhores cheguem ao Parlamento, mas adverte: “A questão da reunificação não está na ordem do dia, e não nos ocupamos com isso no momento”.
Mas é Willy Brandt, que era prefeito de Berlim em 13 de agosto de 1961, quando o Muro foi construído, que enuncia a previsão mais acertada:
“Berlim vai viver, e o Muro vai cair”.

GSL
Novembro de 1989