Quero minha rua de volta

Lembro de um vendedor de sorvetes, nos anos setenta, que circulava pelo centro de São Paulo a bordo de uma charrete, puxada por um lento pangaré.
Volta e meia o sorveteiro parava para atender a um cliente, e se fosse numa rua estreita, bloqueava uma das pistas de trânsito.
Alguns motoristas mais impacientes calcavam a mão na buzina, sem o menor resultado. Colocavam então a cabeça para fora do veículo, e proferiam insultos dirigidos ao sorveteiro, ao equino e às senhoras genitoras de ambos. Até que algum cliente ou transeunte, que conhecia o imperturbável vendedor, alertava os motoristas: “não adianta buzinar nem gritar, o homem é completamente surdo!”.

Havia também uma figura folclórica que perambulava pelo centro da cidade – Avenidas Ipiranga, São João e São Luiz, Praça da República e adjacências.
Tratava-se de uma senhora quarentona, magra, altiva e maquiada, totalmente vestida de branco. Por vezes parecia um fantasma ambulante, envolta que estava em alvas túnicas (ou seriam lençóis ?).
Com um rosário numa mão e um megafone na outra, bradava contra o pecado e os pecadores, a luxúria e a devassidão desta São Paulo sodomagomorriana.
Principalmente em épocas pré carnavalescas, alertava contra os pecados mortais que certamente seriam cometidos desbragadamente durante o reinado de Momo.
Tecia elogios à Virgem Maria e seu filho (isso sempre me pareceu uma contradição em termos, mas quem sou eu para duvidar de um milagre...), e fazia tudo isso em alto e bom som. Muito alto, por sinal, pois o megafone era daqueles usados em cidades do interior para fazer anúncios em praça pública.
Era conhecida como “ a louca do megafone”, ainda que alguns preferissem considerá-la uma santa – ou quase, pois comentava-se que era muito rica, qualidade essa dificilmente associada à santidade.

Seja como for, eram personagens inócuos, que davam até um certo toque de poesia ao duro asfalto e ao concreto circunstante.

Mas o panorama citadino mudou muito, desde então.

A cada dia que passa, mais espaço nas ruas e calçadas de São Paulo (e outras cidades também, suponho) vai sendo tomado por motoqueiros (refiro-me aos que “cortam caminho” transitando em calçadas), carrinheiros (daqueles que recolhem materiais recicláveis), manobristas de valet service e seus vistosos guarda-sóis, caçambas cheias de entulho, vendedores ambulantes, pedintes e mendigos, distribuidores de folhetos, pregadores de hare krishna, obras (principalmente em época de eleições), kombis-lanchonetes, multidões em pontos de ônibus na hora do rush, placas de lançamentos imobiliários, pipoqueiros, lixo ensacado ou a granel, mesas e cadeiras de bares e restaurantes....

Sim, eu sei, e até concordo: todos tem direito à vida, e ao trabalho.
Está na Constituição, e mesmo se não estivesse, duvido que mudaria alguma coisa.

Mas, e o meu direito a andar na calçada em linha reta, sem ter de ziguezaguear entre obstáculos, vivos ou inanimados ? e o meu direito de não ser abordado, aliciado e atropelado, no que antigamente se chamava de “passeio público” ? e o meu direito de não escorregar em poças de maionese e ketchup, e de não ter de desviar de mesinhas cobertas de mercadorias contrabandeadas e falsificadas ?
Infelizmente, esses direitos não constam do texto constitucional.

Estamos em época de eleições municipais, e os pretendentes ao cargo de prefeito são pródigos em prometer um mundo melhor, onde o trânsito anda, os fiscais fiscalizam, as escolas ensinam e os hospitais curam.

Mas não ouvi nenhum candidato a alcaide prometer que, caso eleito, devolveria a totalidade das calçadas, e pelo menos parte das ruas, a esse desprotegido ser ameaçado de extinção: o pedestre.

GSL
08.09.08