Atenção, senhores passageiros

- Atenção, senhores passageiros...ficha número um ?
- Aqui !
- Pode embarcar. Ficha número dois ?
E o embarque prosseguia, ordenadamente, até que todos os 18 ou 20 passageiros estivessem a bordo do DC-3.
O ano, 1963. O local, aeroporto de Itajaí
[1].
O check-in (que naquele tempo ainda se chamava simplesmente de apresentação no aeroporto) funcionava assim: cada passageiro, à medida que chegava ao balcão da companhia aérea, recebia uma ficha de plástico azul, com um número gravado. Na hora do embarque, convocado aos berros pelo despachante de vôo, os passageiros caminhavam os poucos metros até o avião e aguardavam ao pé da escada até serem chamados, um a um. Assim, o embarque era efetuado na ordem de chegada ao aeroporto, e quem desejasse sentar na janelinha, que chegasse mais cedo.
Já dentro do avião, o passageiro que quisesse acomodar-se mais à frente era obrigado a subir pelo corredor, uma rampa íngreme, em função do diminuto tamanho da roda traseira sobre a qual repousava a cauda do avião. O DC-3 ficava com a frente empinada, e só atingia a posição horizontal na fase final da decolagem.
Bem, já estamos voando de Itajaí para Porto Alegre. Direto ? Nem pensar. São três escalas, em Florianópolis, Tubarão e Caxias do Sul.
Esta última escala era a mais bucólica. Pousávamos em uma espécie de pastagem, espantando famílias de bovinos, crianças que jogavam bola e um ou outro camponês distraído.
Felizmente os ecologistas ainda não atrapalhavam a aviação.

Quatro anos mais tarde eu estava novamente ao pé da escada de um avião, desta vez um
DC-8 da Braniff. O aeroporto: Viracopos. O barracão – perdão, o terminal – mais lembrava um posto avançado da Legião Estrangeira. As instalações mais luxuosas do aeroporto pertenciam ao restaurante, do qual dizia-se ser o único estabelecimento gastronômico do mundo a dispor de uma pista de pouso própria.
Desta vez, minha presença ao pé do avião não era na qualidade de passageiro. Uniformizado e perfilado junto aos colegas, eu exercia a função de despachante de aeroporto.
A cada uma das três chegadas semanais dos coloridos aviões da Braniff, os funcionários da companhia aguardavam na pista, qual pelotão, até que o avião completasse as manobras de estacionamento. Só então cada um assumia suas funções no desembarque, na alfândega, na carga ou em operações.
Minha experiência de trabalho como motorista de uma fábrica em Memphis, no sul dos EUA, me habilitara a cuidar das comunicações com a tripulação de cockpit. Afinal, eu era um dos poucos que entendiam perfeitamente o enrolado “idioma” texano, falado pelos pilotos.
Antes da chegada dos vôos eu operava um antigo rádio VHF, com o qual nos comunicávamos com o avião. Mais tarde, acompanhava os passageiros que chegavam dos Estados Unidos até o aeroporto de Congonhas, a bordo dos aviões Dart Herald da Sadia, hoje TransBrasil.
[2]

Eram vôos fretados, tanto para os passageiros que chegavam ao Brasil, quanto para aqueles que partiam, à noite, em nossos vôos para Miami, New York ou Los Angeles.
Com este serviço adicional, destinado a aliviar as agruras do percurso entre Congonhas e Viracopos, enfrentávamos a concorrência da Pan Am e da Varig. Enquanto estas companhias voavam sem escalas entre o Brasil e os destinos americanos, nossos vôos passavam por Lima, e por vezes também pelo Panamá e Ecuador. A Braniff também enfrentava a fama de ser “the largest un-scheduled airline in the world”
[3], resultado dos constantes atrasos dos vôos.
Para nós, no aeroporto, um vôo que chegasse até seis horas após o horário previsto estava “on schedule”...no horário.

Nosso chefe, o gerente de aeroporto da empresa, por alguma razão até hoje inexplicada, não permitia que tirássemos uma soneca sequer, mesmo que o avião atrasasse 12 horas. Aprendemos a dormir de olhos abertos. Não podíamos tomar cerveja. Treinamos o garçom do bar para nos servir a loirinha em garrafas de guaraná.
Nosso salário era magro. A maior parte dos funcionários, também. Mas havia o dinheiro das diárias de alimentação, pago nos dias em que trabalhávamos em Viracopos. Pelo menos, comíamos três vezes por semana. Era bem mais do que eu conseguira durante os três meses em que procurei emprego em São Paulo. Por pouco não me tornei vendedor de livros, motorista de madame ou professor de inglês.

Entrar em uma companhia aérea, naquela época, era uma questão de Q.I. – Quem Indicou.
Uma amiga da KLM me revelou que a Braniff ia contratar duas pessoas. Fui lá. Não consegui passar nem da telefonista...algumas manobras mais tarde, logrei uma entrevista com o gerente de aeroporto. Tive de preencher um formulário e escrever uma página sobre o tema “Por que quero trabalhar na Braniff”. Foi fácil. Minha primeira – e até então única – viagem aos Estados Unidos havia sido justamente pela Braniff. E meu pai havia me ensinado a escrever textos com começo, meio e fim, visto que os testes de múltipla escolha ainda não haviam sido inventados.

Quem começava a trabalhar em uma companhia aérea, na década de 60, era invariavelmente submetido a algum trote. Eram brincadeiras criativas e divertidas. Menos para a vítima, é claro. Mas os únicos ferimentos eram infligidos ao orgulho dos iniciantes. Quanto mais “prosa” ou “metida”, como dizíamos então, era a pessoa, maior era a humilhação.

Eu fui enviado à torre de controle do aeroporto, supostamente para retirar um boletim meteorológico. As luzes da estreita escada circular da torre foram apagadas. Subi tateando e batendo a cabeça nas paredes. Quando cheguei ao topo, tonto e exausto, fui informado de que o boletim já havia sido transmitido por telefone...

Um jovem e atlético novato foi enviado ao DAC,
[4] para retirar as chaves do aeroporto.
Lá foi informado de que as chaves estavam na alfândega, onde não havia ninguém de plantão.
Ao voltar sem as chaves, foi alertado pelos colegas de que se não as encontrasse rapidamente seria responsável por um terrível acidente, visto que o aeroporto estava fechado e o avião, quase sem combustível, precisava pousar imediatamente...Imaginem só o pânico do moço, que, como todo mundo, já ouvira falar de “aeroporto fechado”, sem saber que isso se referia apenas às condições meteorológicas...

Aproveitando da ausência do diretor da empresa, convocamos certa vez um funcionário recém contratado para uma fictícia reunião muito importante. O papel do diretor ausente, executivo este desconhecido pelo novato, foi ocupado por um promotor de vendas dotado de tendências artísticas. O “diretor” cobrou melhores resultados, esbravejou, ameaçou despedir, deu socos na mesa e xingou em várias línguas – o verdadeiro diretor, como todos sabiam, era um anglo-argentino. O novo colega saiu de lá tremendo, certo de que não iria completar nem o período de experiência...

Algumas vezes, sempre em função de vôos atrasados e tarefas operacionais, passávamos a noite no aeroporto de Congonhas. Até uma ou duas horas da madrugada havia o movimento das pessoas que iam ao aeroporto tomar um cafezinho, antiga tradição paulistana. Não havia nada mais aberto na cidade àquela hora – serviço de 24 horas, só no pronto socorro e no Ceasa (hoje CEAGESP
[5]), onde podia-se tomar sopa de cebola até de madrugada.
Quando o aeroporto ficava totalmente vazio e silencioso, pois até os vigias dormiam, promovíamos animadas corridas em cadeira de rodas, pelos saguões.

Os pilotos da Sadia também apreciavam uma brincadeira, de preferência utilizando o avião como instrumento. Às vezes, a caminho de Viracopos, dávamos uma carona no Dart Herald (sem passageiros, é claro) a algum colega, para uma “viagem de familiarização”. O avião decolava de Congonhas, mas após algumas voltas panorâmicas sobre São Paulo aprestava-se a pousar no Campo de Marte. Ou, pelo menos, é o que aparentava fazer. Só que, após percorrer toda a extensão da pista a poucos metros de altitude, o avião arremetia subitamente. O coitado do colega novato, que a essas alturas já não estava entendendo que raio de percurso era aquele, quase morria de susto e se molhava todo – com o suco de laranja que gentilmente lhe havia sido servido.

Outro passatempo favorito dos pilotos da Sadia (eram sempre os mesmos dois), era o de dar vôos rasantes, à noite, sobre a Via Anhanguera. De repente acendiam as luzes e os faróis de pouso da aeronave, cegando e aterrorizando os motoristas na Via, que pensavam tratar-se de espaçonave prestes a atacá-los.

Dentre todos os colegas com os quais trabalhei nos aeroportos de Congonhas e Viracopos, um merece especial destaque: Gandola, um brasileiro de origem africana.
Sua função era das mais modestas: carregador. Colocava as malas na balança (daquelas antigas, enorme), etiquetava a bagagem, e colocava os volumes no carrinho estacionado atrás do balcão, para que fossem levados até o avião.

Mas sua modéstia se restringia à função. De resto, portava-se como se fosse o rei do aeroporto de Viracopos, e não lhe faltavam súditos. Colocava apelido em todos, e ai de quem lhe fosse antipático. Inventava trotes e brincadeiras, e nem os funcionários mais graduados lhe escapavam. Quando algum colega viajava para Miami, levando uma mala vazia para as compras, ele a enchia com manuais e catálogos velhos, ou mesmo pedras. Ao abrir a mala na alfândega americana, a vítima tinha de dar explicações quanto ao conteudo da “bagagem” aos zelosos funcionários do fisco americano, e na melhor das hipóteses passava por debilóide.

À parte de seu trabalho em Viracopos, Gandola também era dono de uma banca de jornais e revistas. Numa época em que havia uma férrea censura política e de costumes, ele comercializava tranquilamente revistinhas “apimentadas”, em especial aquelas desenhadas pelo imortal Carlos Zéfiro, chamadas carinhosamente de “catecismos”.
[6]
Não lhe faltavam clientes, e guardo algumas dessas revistas, agora preciosas relíquias históricas, até hoje.

Mas Gandola também era capaz de quebrar os maiores galhos, em especial no que se referia à alfândega. Privava da amizade e simpatia de todos os fiscais, e nenhum amigo seu precisava se preocupar com o conteúdo das malas. É bem verdade que nosso “contrabando”, na época, era bem modesto: calças jeans americanas, discos inéditos no Brasil, pequenas televisões, comestíveis finos. Éramos os sacoleiros de então, e Gandola era a nossa “Ponte da Amizade”.

Hoje em dia, ao passear pelo saguão apinhado do aeroporto de Guarulhos, não posso deixar de embarcar em uma viagem sentimental ao passado da aviação em São Paulo.

Ao final dos anos sessenta, cerca de duas dúzias de empresas aéreas ofereciam a seus clientes um serviço quase personalizado. Conhecíamos muitos de nossos passageiros pelo nome, e, pricipalmente, conhecíamos uns aos outros.
Hoje em dia são mais de 70 companhias aéreas presentes em nosso país, através de escritórios próprios ou de representações. O volume anual de passageiros atinge números de sete dígitos, exigindo o concurso de milhares de aeroviários, para um atendimento quase sempre impessoal e automatizado.
Não poderia ser de outra forma. Junto com a quantidade vem o anonimato.

Passaram os anos, passou muita gente pelos dois lados do balcão.
Passaram até mesmo muitas empresas, como a Braniff, a Pan Am, a Eastern, a National, a TWA, a Aerolineas Peruanas, a British United Airways, a BOAC, a Transbrasil, a Cruzeiro do Sul, a VASP, a Panair do Brasil...

Pois é. Como dizíamos já naquela época, na vida tudo é passageiro.

GSL
25.08.1994


[1] O aeroporto mencionado era na cidade de Itajaí mesmo, posteriormente foi relocado para o município de Navegantes
[2] A TransBrasil cessou suas operações em dezembro de 2001
[3] “a maior empresa aérea sem horários do mundo”
[4] DAC – Departamento de Aeronáutica Civil, subordinado ao Ministério da Aeronáutica. Substituído em 2006 pela ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil
[5] CEAGESP - Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
[6] Carlos Zéfiro era o pseudônimo de Alcides Caminha, funcionário público do Ministério do Trabalho. Além de desenhar 862 revistinhas eróticas, foi compositor e parceiro de Nelson Cavaquinho. Sua identidade foi revelada em uma entrevista para a revista Playboy, em 1991. Faleceu em 1992. Vide http://www.carloszefiro.com/